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Algum tempo atrás, navegando pela Internet, encontrei uma página ligada a uma igreja evangélica que fazia uma série de ataques ao Espiritismo, em todas as suas manifestações. Lendo alguns artigos, percebi que eles dedicavam especial atenção em atacar a doutrina da reencarnação. Não é por acaso: esse é um dos principais pilares das religiões de matriz espiritualista. Na mesma página havia um questionário tomado emprestado de uma organização católica, intitulado “20 Perguntas aos Reencarnacionistas”. Percebendo a inconsistência das perguntas, resolvi respondê-las, uma a uma. Como percebo que, em alguns momentos, nós, espíritas umbandistas, nos esquecemos um pouco desse fundamento, decidi publicar as perguntas e as respostas, até como forma de fomentar a reflexão sobre esse fundamento tão importante de nossa religião. Como o texto ficaria muito grande para ser publicado em um único artigo, irei dividi-lo em dez partes, com duas perguntas de cada vez.
DÉCIMA QUINTA PERGUNTA
A doutrina da reencarnação conduz necessariamente à idéia gnóstica de que o homem é o redentor de si mesmo. Mas, se assim fosse, cairíamos num dilema:
a) Ou as ofensas feitas a Deus pelo homem não teriam gravidade infinita;
b) Ou o mérito do homem seria de si, infinito.
Que a ofensa do homem a Deus tenha gravidade infinita decorre da própria infinitude de Deus. Logo, dever-se-ia concluir que, se homem é redentor de si mesmo, pagando com seus próprios méritos as ofensas feitas por ele a Deus infinito, é porque seus méritos pessoais são infinitos. Ora, só Deus pode ter méritos infinitos. Logo, o homem seria divino. O que é uma conclusão gnóstica ou panteísta. De qualquer modo, absurda.
Logo, a Reencarnação é uma falsidade.
R- Mais uma vez vale afirmar que nas religiões cristãs tradicionais, os homens criaram um Deus à sua imagem e semelhança. Isso, somado à total ausência de uma noção de causa e efeito, conduz a equívocos teóricos que são não apenas pueris, como ridículos. Tais equívocos acabam sendo guindados pela vaidade tola de seus autores à categoria de teologia
A questão, tratada sob uma ótica verdadeiramente filosófica poderia ser resolvida da seguinte forma: Há ofensas físicas que consistem em danos materiais causados por uma pessoa a outra e ofensas morais que consistem em atingir alguém em sua honra. Ora, Deus é espírito e, conseqüentemente, impassível de sofrer ofensas físicas, logo quando se fala em ofender a Deus só se pode estar falando em ofensas morais. Ocorre que o alvo de uma ofensa moral é sempre e invariavelmente o orgulho de alguém. Destarte, para acreditarmos que o homem possa ofender a Deus, teríamos que admitir um Deus orgulhoso e rancoroso, o que é incompatível com a noção de perfeição infinita que dEle temos.
Mesmo que raciocinemos pela lógica esquálida dos teólogos e admitamos que se possa ofender a Deus e que tais ofensas tenham gravidade infinita decorrente da infinitude divina, temos que admitir que da mesma fonte decorra que Deus é perdão infinito. Por esse raciocínio, um perdão infinito anula uma ofensa de gravidade infinita.
Ninguém ofende a Deus. Deus é amor e o amor é compassivo. Deus é perdão e o perdão é a expressão mais nobre de sua grandeza, mas Deus também é justiça e, por isso, existe uma Lei de Harmonia Universal, dele emanada, mas impessoal como qualquer lei, regendo todos os fatos do universo,. A ela e unicamente a ela está subordinado nosso livre arbítrio, de sorte que, se com nossas ações comprometemos essa harmonia, contraímos um débito perante essa lei, débito esse que irá exigir reparação proporcional. Somente o mérito repara a falta. Um verdadeiro critério de justiça jamais exigiria que o mérito fosse infinito, mas tão somente proporcional ao erro.
Assim sendo, o homem é sim o redentor de si mesmo.
DÉCIMA SEXTA PERGUNTA.
Se o homem fosse divino por sua natureza, como se explicaria ser ele capaz de pecado? A doutrina da reencarnação leva, então, à conclusão de que o mal moral provém da própria natureza divina. O que significa a aceitação do dualismo maniqueu e gnóstico. A reencarnação leva necessariamente à aceitação do dualismo metafísico, que é tese gnóstica que repugna à razão e é contra a Fé.
R- Observa-se na pergunta uma técnica intelectualmente desonesta de indução: inicialmente, na pergunta 13 o autor expressa uma posição estritamente pessoal, servindo-se da conjunção “se” por duas vezes – o que deixa claro que está levantando uma hipótese – tentando demonstrar com seu raciocínio que, em sua opinião, existindo reencarnação, cristo não seria o redentor, porque o homem seria o redentor de si mesmo e comparando essa posição a uma tese fundamental da Gnose. Posteriormente, na pergunta 15 cria uma polêmica, novamente baseada em raciocínios próprios, trazendo idéias de ofensa infinita e de mérito infinito e procurando aproximar a tese espírita das teses gnósticas. Ao iniciar a pergunta 16 com outra pergunta “Se o homem fosse divino por sua natureza...” acaba passando a idéia de que os espíritas são os defensores dessa tese. Na verdade, as teses são dele. Ele levantou esses questionamentos. O Espiritismo nada tem a ver com a gnose, muito menos com o maniqueísmo. Aliás, pensar assim denota desconhecimento completo de qualquer uma das doutrinas ou das três.
Quanto à Gnose – ou melhor falando às Gnoses, pois existem diversas escolas filosófico-religiosas sob essa designação – vale ressaltar que possui três teses fundamentais a embasar todo o corpo doutrinário:
1ª – A existência de um intermediário de Deus a organizar e dar forma ao mundo material, entidade essa responsável pela existência do mal que não pode ser atribuído à natureza divina.
2ª – A miséria do homem, prisioneiro da matéria, uma vez que a alma teria uma origem divina.
3ª – O apocalipse gnóstico, segundo o qual o mundo perverso seria consumido e substituído pelo reino divino.
Ora, o Espiritismo tem como ponto fulcral de sua doutrina a unicidade de Deus, sendo claro e inquestionável para qualquer iniciante nos estudos doutrinários que o mal tem origem única e exclusivamente na ignorância humana. Não existe nenhuma obra reconhecidamente espírita que fale da existência de seres intermediários entre o criador e a criação, nem muito menos responsáveis pela existência de um mal metafísico. Nesse sentido, as religiões cristãs tradicionais – católica, protestante e ortodoxa – estão bem mais próximas da Gnose, já que continuam acreditando no diabo que nada mais é que uma outra designação dada ao demiurgo gnóstico.
Além disso, o Espiritismo não considera, nem nunca considerou a matéria como uma prisão da alma. A matéria é um estágio de aprendizado, uma escola obrigatória na evolução do espírito. Por essa razão os espíritas têm a vida física em grande conta e a doutrina sempre foi impositiva quanto à necessidade de se zelar do corpo, da saúde, do bem estar físico, sob a ótica de que a matéria que ocupamos é um bem que nos é dado pelo criador para nosso próprio desenvolvimento e que somos responsáveis perante esse mesmo criador por tudo aquilo que fazemos a essa matéria. Em contrapartida, as religiões tradicionais sempre pregaram a mortificação do corpo sob a forma de jejuns, de abstinências e até mesmo de autoflagelação (os católicos entendem disso como ninguém). É certo que em todas as épocas da humanidade sempre existiram indivíduos inimigos do aprendizado e para esses pode parecer de bom tom depredar uma escola.
Por fim, não existe na Doutrina Espírita qualquer previsão apocalíptica. A Terra não será destruída, não haverá juízo final, nem condenações eternas.
Percebe-se, portanto, que o Espiritismo se afasta das Gnoses por seus fundamentos, por suas bases, em sua essência. Procurar aproximar as doutrinas em razão de algum detalhe doutrinário, muitas vezes comum a diversas religiões é como tentar aproximar o Islamismo do Budismo, somente porque ambas acreditam em Deus. É como igualar um fogão e um avião, porque ambos usam parafusos em suas estruturas.
No que diz respeito ao Maniqueísmo, que é também uma forma de Gnose, possivelmente uma interpretação mal digerida dos conceitos, fruto de leituras superficiais pode levar a uma falsa identificação com a Doutrina Espírita, em função da visão reencarnacionista presente nos preceitos maniqueus, segundo os quais, no terceiro estágio, após a separação entre espírito e matéria, o espírito que ainda não tiver adquirido suficiente conhecimento espiritual é condenado a reencarnar em novos corpos.
Quanto a isso, volta-se a insistir: o Espiritismo não criou e nem tem a exclusividade da tese da reencarnação. Essa verdade já era conhecida milênios antes de Cristo, por isso há que necessariamente se separar o joio do trigo e tal separação deve se dar sempre na essência, nunca na aparência.
Ora, preceito fundamental do maniqueísmo, muito mais que a reencarnação que tem caráter instrumental, é o dualismo bem/mal. Para essa doutrina, as duas faces são autônomas e se colocam em eterna oposição, fazendo com que o mundo seja uma mera conseqüência desse antagonismo. Nessa linha, o bem é personificado pelo espírito, enquanto o mal é personificado pela matéria, da qual o espírito fica prisioneiro durante certo período de tempo.
Vale então repetir mais uma vez: para o Espiritismo, o mal é meramente circunstancial, jamais autônomo. Tem sua origem na ignorância e tende a ser suprimido na medida do aperfeiçoamento constante. Para o Espiritismo, a matéria não personifica o mal, aliás, a matéria não personifica nada, ela é fluido cósmico condensado que sofre a ação do espírito e se presta a seu aperfeiçoamento em estágios sucessivos.
Fica completamente descaracterizada a ligação entre Espiritismo e Maniqueísmo, sendo importante ainda ressaltar que, se alguma das religiões cristãs bebeu nas fontes do Maniqueísmo, foi a Católica que tem em Agostinho de Tagasta um de seus doutores e finge ignorar que esse sim era um maniqueísta ferrenho e dedicado, até sua conversão (leia-se Da Cidade de Deus). Mesmo na atual doutrina católica é possível encontrar inúmeros traços dessa ligação promíscua, manifestados no ascetismo, na hierarquia e na condenação dos prazeres terrenos, principalmente do sexo, além, é claro, da crença absurda no diabo.
2 comentários:
Para mim, a reencarnação é a oportunidade que o homem tem para aprender, compreender, corrigir suas falhas, pedoar a si e aos outros, e assim, poder evoluir na sua caminhada espiritual. Cabe a cada um de nós, realizarmos um bom trabalho, para que nossas encarnações sejam produtivas, pois sempre teremos que ter como objetivo a nossa reforma íntima para que nos tornemos um novo ser, um ser melhor.
E eu ainda acrescento que essa reforma íntima é o trabalho mais difícil que temos a realizar em qualquer encarnação. Ela acontece aos poucos, de forma lenta e gradual. Por isso mesmo seria uma insensatez acreditar que em uma única encarnação seria possível concluir tarefa tão árdua e alcançar o "paraíso".
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