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Algum tempo atrás, navegando pela Internet, encontrei uma página ligada a uma igreja evangélica que fazia uma série de ataques ao Espiritismo, em todas as suas manifestações. Lendo alguns artigos, percebi que eles dedicavam especial atenção em atacar a doutrina da reencarnação. Não é por acaso: esse é um dos principais pilares das religiões de matriz espiritualista. Na mesma página havia um questionário tomado emprestado de uma organização católica, intitulado “20 Perguntas aos Reencarnacionistas”. Percebendo a inconsistência das perguntas, resolvi respondê-las, uma a uma. Como percebo que, em alguns momentos, nós, espíritas umbandistas, nos esquecemos um pouco desse fundamento, decidi publicar as perguntas e as respostas, até como forma de fomentar a reflexão sobre esse fundamento tão importante de nossa religião. Como o texto ficaria muito grande para ser publicado em um único artigo, irei dividi-lo em dez partes, com duas perguntas de cada vez.
NONA PERGUNTA
A reencarnação causa uma destruição da caridade. Se uma pessoa nasce em certa situação de necessidade, doente, ou em situação social inferior ou nociva -- como escrava, por exemplo, ou pária – nada se deveria fazer para ajudá-la, porque propiciar-lhe qualquer auxílio seria, de fato, burlar a justiça divina que determinou que ela nascesse em tal situação como justo castigo de seus pecados numa vida anterior. É por isso que na Índia, país em que se crê normalmente na reencarnação, praticamente ninguém se preocupa em auxiliar os infelizes párias. A reencarnação destrói a caridade. Portanto, é falsa.
R- Há várias questões a serem tratadas dentro da pergunta. Vamos a elas:
Em primeiro lugar, vamos falar das mazelas humanas, para tecer uma consideração que precede à própria pergunta, e dizer que, se não houvesse uma causa anterior a determinar que uns necessitassem de auxílio e outros estivessem em condição de auxiliar, ninguém precisaria se preocupar em estar burlando a Justiça Divina, porque não haveria o que burlar.
O principal erro da pergunta consiste em conceber duas classes diferentes de humanos, a dos que só carecem e a dos que só abundam. Quem dentre os encarnados na Terra poderia, em sã consciência afirmar não precisar da ajuda de ninguém para absolutamente nada?
Tal pessoa não existe, porque, na realidade, somos todos endividados. Todos os que aqui estamos, de alguma forma resgatamos débitos contraídos em encarnações precedentes, por isso a ninguém é dado deixar de auxiliar por receio de anular uma punição. A justiça pertence única e exclusivamente a Deus. Para todos nós prevalece o critério de Jesus: “aquele que estiver sem pecado, atire a primeira pedra.”
Precisamente por isso, a Providência Divina disseminou a Lei de Caridade, para que no auxílio ao próximo tratemos de nós mesmos, pois, no fundo, só nos dispomos a ajudar, porque temos consciência de nossa própria miserabilidade. Quem dá um prato de comida para saciar a fome, também tem estômago, quem hipoteca solidariedade para aplacar a dor moral, também tem escrúpulos.
Sob esse fundamento, pouco a pouco, a generosidade atenua o egoísmo, a misericórdia ameniza o rancor e essa conduta reiterada produz a consciência radicada no bem. É a prática que conduz à perfeição.
Ao contrário do que muitos pensam, resgatar pela reencarnação não se resume a pagar com o próprio sofrimento. Consiste acima de tudo em aprender com a prática do bem, pois os mundos superiores e felizes não são habitados por sofredores arrependidos, mas por almas redimidas no amor ao próximo.
Por essas razões, o Espiritismo tem por principal divisa a máxima “fora da caridade não há salvação” e por principal alicerce doutrinário a Lei de Reencarnação. Sabendo disso, somente com muito cinismo alguém poderia sustentar que a reencarnação destrói a caridade.
Por fim, deve-se dizer que hodiernamente, várias religiões acreditam na reencarnação, a exemplo do Hinduísmo e do Budismo. Essa crença – comum desde os primórdios da humanidade – também estava presente no Cristianismo dos primeiros tempos até ser banida dos cânones da Igreja para atender a interesses pessoais da Imperatriz Teodora. Há, contudo, sensíveis diferenças entre a reencarnação preconizada por essas religiões e a que emerge das obras kardekianas após a segunda metade do século XIX.
Embora não seja nosso objetivo aqui detalhar tais diferenças, é imprescindível citar que a doutrina kardecista não encara o problema do carma de forma mecânica ou fatalista, como faz o Hinduismo, nem admite a possibilidade da metempsicose como ocorre no Budismo, de sorte que o resgate das faltas é sempre um instrumento na busca do objetivo maior que é a evolução, e a trajetória do espírito é sempre ascendente, não existindo retrocessos na escalada. É preciso, por isso, saber o que se critica, antes de se criticar, pois, sob a idéia de reencarnação, abrigam-se sistemas filosóficos distintos, sérios e que sob seu manto de espiritualidade abrigam milhões de seres humanos. Todos são bons, mas não se confundem e somente por leviandade ou por ignorância se poderia juntar tudo num mesmo pacote para apedrejar indistintamente a todos.
DÉCIMA PERGUNTA
A reencarnação causaria uma tendência à imoralidade e não um incentivo à virtude. Com efeito, se sabemos que temos só uma vida e que, ao fim dela, seremos julgados por Deus, procuramos converter-nos antes da morte. Pelo contrário, se imaginamos que teremos milhares de vidas e reencarnações, então não nos veríamos impelidos à conversão imediata. Como um aluno que tivesse a possibilidade de fazer milhares de provas de recuperação, para ser promovido, pouco se importaria em perder uma prova - pois poderia facilmente recuperar essa perda em provas futuras - assim também, havendo milhares de reencarnações, o homem seria levado a desleixar seu aprimoramento moral, porque confiaria em recuperar-se no futuro. Diria alguém: "Esta vida atual, desta vez, quero aproveitá-la gozando à vontade. Em outra encarnação, recuperar-me-ei”. Portanto, a reencarnação impele mais à imoralidade do que à virtude.
R- Essa é, entre todas, a pergunta que guarda mais compromisso com a lógica e a que exige maior complexidade na resposta.
Jesus disse em Mateus, XII, 34, que a boca sempre fala do que é abundante no coração. Nesse diapasão, não é a doutrina da reencarnação que conduz à imoralidade, mas a imoralidade latente que conduz ao falseamento do princípio. Quem consegue enxergar no dispositivo da Justiça Divina um estímulo à iniqüidade, traz a iniqüidade na alma. Deus sabe disso e, em sua infinita misericórdia concede infinitas oportunidades àqueles cuja necessidade do gozo é maior que a consciência do bem. A magia do tempo que converte carvão em diamante, também converte primatas em anjos.
A dificuldade que tantos encontram em assimilar essa idéia provém principalmente da imagem distorcida que os homens fazem de Deus. Essa distorção se propaga em cascata, contaminando tudo a seu redor e produzindo sistemas religiosos deformados em suas bases, preconizando um bem formal, de fachada e uma ética assentada no medo da punição.
A pergunta, por si só já é rica em exemplos do que aqui se afirma, ao dizer que o homem, sabendo que só tem uma vida, ao final da qual será julgado por Deus, procura converter-se antes da morte.
Essa conversão nada mais é do que uma mudança por conveniência, onde o medo da punição induz à ocultação das tendências consideradas menos dignas, com o fito de granjear a simpatia de Deus e principalmente o aplauso dos homens, como se a perfeição consistisse em varrer a sujeira para debaixo do tapete, apresentando uma aparência impoluta, mas um interior corroído pelo desejo sufocado. É uma ética de leões de circo que, dóceis ante o chicote do domador, guardam em seu interior uma fera sanguinária, pronta a estraçalhar ao primeiro descuido. Quem se arriscaria a levar um para casa a fim de criar como um gato doméstico?
Deus não se deixa enganar por aparências. Quem se contenta com esse ideal de virtude formal, certamente se satisfaz ante a perspectiva de habitar futuramente um céu repleto de hipócritas, de feras domadas, vivendo sob a batuta de um Deus moralmente míope, que não condena a imperfeição, contanto que ela não se manifeste.
A doutrina da reencarnação, como preconizada por Kardec entende que a perfeição não consiste no sufocamento da imperfeição, mas em sua supressão. Essa supressão, por sua vez, decorre de um complexo de fatores que incluem maturidade, educação, desprendimento, altruísmo, e muitos outros que são produto do tempo.
Exemplificando: sabemos que todos nós encarnados temos necessidade de possuir alguns bens que nos garantem a sobrevivência. Consideremos, então, três indivíduos diferentes, todos necessitados de determinado bem. O primeiro não hesita em recorrer ao furto para satisfazer sua necessidade. É um meliante. O segundo ambiciona ardentemente aquele bem, mas teme profundamente o castigo legal que pode advir do furto e o julgamento que as outras pessoas poderiam fazer dele, caso fosse descoberto e, nessa linha, reprime seu instinto. O terceiro necessita do bem, mas jamais pensaria na possibilidade de furtá-lo, porque possui dentro de si respeito ao próximo, sentimento de dignidade e já traz profundamente arraigada a consciência de que a satisfação das necessidades tem que decorrer do esforço pessoal.
Na visão dos não reencarnacionistas, perecendo esses três indivíduos simultaneamente, apenas o primeiro iria para o inferno. Os outros dois iriam para o céu. O segundo indivíduo, contudo, não passa de um hipócrita, um leão de circo que, em termos de consciência está a milênios de atingir a evolução do terceiro, mas teria que ser levado ao céu, já que se absteve de fazer o mal.
É lógico que esse é apenas um exemplo didático para ilustrar a lógica reducionista e superficial daqueles que preconizam uma única vida e ainda têm a ingenuidade de crer na existência de um inferno. Falta-lhes a clareza de perceber que Deus é simplesmente luz e perfeição e que o único inferno é aquele que se alimenta da treva da consciência dos que se comprazendo na iniqüidade pensam em utilizar a oportunidade de aperfeiçoamento para a satisfação de seus desejos sórdidos.
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